Golden share como instrumento de governança corporativa

Golden share como instrumento de governança corporativa

*Por Marina Gouveia de Azevedo Viel

04/05/2023

Antes de adentrar ao tema deste artigo convém apresentar os conceitos de governança corporativa e golden share.

Em síntese, a governança corporativa deve se pautar sempre em transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade. Pode ser deferida como o “sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. As boas práticas de governança corporativa convertem princípios básicos em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum”.[1]

Por sua vez, a golden share ou ação preferencial de classe especial está prevista no artigo 17, parágrafo 7º, da Lei nº 6.404/76, o qual prevê que

Nas companhias objeto de desestatização poderá ser criada ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva do ente desestatizante, à qual o estatuto social poderá conferir os poderes que especificar, inclusive o poder de veto às deliberações da assembleia-geral nas matérias que especificar.[2]

A criação das golden shares estava prevista na Lei nº 8.031/1990, a qual instituiu o Programa Nacional de Desestatização das empresas controladas pela União Federal. Também prevista no Decreto nº 99.463/1990, que a regulamentava, posteriormente revogada pela Lei 9.491/1997, regulamentada pelo decreto nº 2.594/1998. A Lei 10.303/2001 estendeu o instituto golden share para as empresas privatizadas pelos Estados e Municípios.[3]

Assim, sob a égide da Lei nº 8.301/90, foram emitidas ações de classe especial em três companhias privatizadas, são elas: Celma, Embraer e Vale do Rio Doce.

A golden share é tratada como ação de classe especial detida pelo poder público, principalmente utilizadas para romper o controle acionário de empresa com participação estatal, de forma a se manter o controle desta empresa sem necessariamente haver a titularidade de mais de 50% das ações.[4]

Há também a espécie da golden share prevista no artigo 18 da Lei das S.A[5], que permite a criação de ação privilegiada, o qual prevê que o estatuto social pode assegurar o direito de eleger, em votação em separado, membros dos órgãos da administração e vetar determinadas alterações estatutárias.

O professor Fábio Ulhôa Coelho defende a constituição de golden shares pelas companhias fechadas brasileiras que não sejam objeto de privatização, “uma vez que o direito brasileiro não autoriza a discriminação de classe das ações ordinárias de acordo com o critério de veto e prerrogativas de deliberações sociais, a qual somente poderia ser feita pela utilização de ações preferenciais de classe especial.”[6]

No tocante ao Direito Público, notadamente na espécie prevista pelo artigo 17, parágrafo sétimo, da Lei das S.A, há grande discussão acerca da efetividade das golden shares como mecanismo de ingerência do Estado nas companhias privatizadas após a transferência de controle ao setor privado. Isso porque, a manutenção da golden share “pode prejudicar a concretização dos benefícios buscados com o processo de desestatização e se transforme em um instrumento de interferência política sobre os negócios da companhia e ineficiência.”[7]

Já no Direito Privado, há quem defenda que as golden shares violam regras e princípios centrais de direito societário, tais como (i) a proporcionalidade entre direitos e participação acionária (princípio enunciado como “one share one vote”), (ii) a impessoalidade da participação acionária, (iii) a igualdade entre acionistas, (iv) a deliberação por maioria, (v) a livre circulação dos títulos acionários, e (vi) a tipicidade das espécies e classes de ações.[8]

Por contrariar essas regras e princípios, tidos como essenciais ao regime das sociedades anônimas, há quem defenda, inclusive, que as golden shares descaracterizariam esse tipo societário.

É bem verdade que o poder de veto das alterações estatutárias e o poder de eleger a maioria dos membros do Conselho, previstos no artigo 18 da Lei das S.A, gera, por consequência, o poder de controlar a sociedade. Esses poderes são atribuídos a ações preferenciais de classe especial (golden shares – art. 18 da lei societária) que são, por sua vez, transferidas aos administradores.

O referido artigo, portanto, permite que ações preferencias confiram a seus titulares esse poder de veto e de indicação de membros do Conselho, o que acaba por configurar um controle gerencial efetivo que, na prática, pode ser tanto ou mais efetivo que o controle majoritário de capital.

A partir do momento em que é possível escolher os administradores da sociedade, acaba-se por controlar a própria sociedade. Os detentores desse poder devem suportar os mesmos ônus jurídicos da responsabilidade atribuída ao acionista controlador, desde que efetivamente caracterizado esse controle de fato por eles exercido.

Ensina Calixto Salomão que o controle acionário por meio de emissão de golden shares é “uma questão delicada e de resposta relativa”[9], haja vista a posição do titular da golden share apenas ser caracterizada quando o seu possuidor assumir posições gerenciais.

Assim, leciona que

Sendo a posição do titular da golden share de mero bloqueio e nomeação dos cargos de administração, ele só poderá ser caracterizado como controlador na medida em que possa ele mesmo exercer o poder sobre a companhia, i.e., na medida em que o controle seja gerencial. Apenas nesse caso se pode afirmar que usa o seu poder para efetivamente dirigir as atividades sociais. Por meio da proteção da inamovibilidade da administração e do bloqueio a qualquer alteração estatutária que possa diminuir seus poderes, a administração estará efetivamente controlando a companhia – no sentido de “uso efetivo do poder para dirigir as atividades sociais” (art. 116, b).[10]

Sendo assim, o poder de veto e de bloqueio que podem ser exercidos pelos detentores de golden shares possuem como primeiro objetivo o de proteção à administração e não uma ferramenta de controle.

Ocorre que este instrumento pode ser utilizado como ferramenta de controle acionário, pois tem sido “um instrumento útil para a criação de uma forma de controle gerencial. Nas mãos da administração sim, ele serve como importante instrumento para a garantia do controle (gerencial)”.[11]

Ainda que não seja possível se falar em absoluta transferência de controle através da emissão de golden share, haja vista que a sua finalidade é vetar determinadas matérias, a depender do tipo de veto atribuído a golden share, como, por exemplo, a hipótese de que a atuação da diretoria tenha se tornado possível em função do exercício do poder de veto por parte do titular da golden share, o controle fica demasiadamente mitigado.

Partindo dessas premissas, parece razoável que a ação com “superpoderes” fosse ser utilizada como instrumento de governança corporativa, desde que respeitados todos os princípios de governança, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da sociedade.

O poder de controle dentro de uma sociedade muitas vezes precisa de freios. Logo, através da criação da golden share seria possível reestruturar o poder garantindo formas de controle gerencial, respeitando-se a ética e as boas práticas.[12]

Como visto, por meio da golden share, tem-se o direito de vetar decisões tomadas pelo conselho da companhia, ou seja, a intenção, portanto, é vista sob a ótica da participação estratégica. Por exemplo, um detentor de uma única golden share poderia, caso o estatuto social preveja, vetar deliberações de assembleia tomadas pela maioria dos acionistas da companhia.[13] Assim, neste aspecto, o estatuto social especificaria de forma minuciosa e detalhada todas as matérias passíveis do poder de veto, mas para se falar em golden share como instrumento de governança todos os mecanismos internos já adotados pela sociedade necessariamente deveriam ser observados quando das especificações no estatuto social para a criação das referidas ações.

 

*Marina Gouveia de Azevedo Viel é advogada e sócia da Volpe Zanini Advocacia.


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